sábado, 29 de janeiro de 2011

Cotidiano.


Entrou e ficou desajeitada ali na minha frente. Tive vontade de perguntar a ela se queria que eu carregasse seu livro, mas quando dei por mim, era Nietzsche. Então tive medo e fiquei quieto, até mesmo porque ela estava distante, olhando firmemente para fora da janela, talvez para a garoa que não parava de cair. Para as árvores que passavam. Para as pessoas que entravam a cada estação.
Cabelos loiros, não do tipo amarelo, bem cuidados. Unhas vermelhas, sem maquiagem. Trepava bem? Sabe-se lá, tinha era cara de boa moça, mas dizem que essas carinhas enganam, então sempre fico confuso. Às vezes ela apertava os lábios, como se lembrasse de algo, ou tentasse esquecer. Devia ter um nome daqueles fortes, que enchem a gente de espanto. Que vontade de perguntar seu nome. E ela responderia: Sophia – que é um nome desafiador – e eu repetiria: Sophia, que nome lindo.

Não, não repetiria seu nome, nem diria isso. Seria patético, na verdade. Meu interesse deveria ser subentendido, eu diria: Sophia – com um simples sorriso enigmático no rosto, como se não houvesse um grande interesse por ela. Como se eu já tivesse comido alguém com esse nome, e não necessariamente estivesse afim da moça.
Pensando bem, só o fato de perguntar-lhe o nome seria horroroso. Meu interesse ficaria nítido. Se ela não estivesse segurando Zaratustra, seria apenas mais uma mulher bonita no metrô. Mas era o todo que me interessava, o todo com o livro. E, pelo fato de o livro estar em suas mãos, eu gostaria de saber seu nome. Mas, ridiculamente, pelo mesmo fato, eu tinha medo.
Bem que poderia cair uma moeda de seu bolso, e então eu pegaria. Aí ela sorriria para mim e eu para ela. E perguntaria educadamente se ela gostaria que eu segurasse seu livro e sua bolsa verde musgo. Estava eu a depender de algo que nunca tive: a sorte. E talvez a sorte me trouxesse um amor.
Amor? De que estou eu a falar, afinal? É apenas uma moça bonita com um livro interessante nas mãos. Isso não quer dizer que ela trepe alucinadamente bem, nem que ela goste de beber cerveja ou quem sabe uísque. Quem ela pensa que é para se intrometer assim na minha vida interior, no meio de um final de tarde chuvoso?
Ah, não, velha filha da puta, não! Por que desocupou o lugar da frente? Agora ela sentou e eu perdi a minha chance de segurar seu Nietzsche e quem sabe seus, hum, seios? Droga de velha maldita. Por que não estava sentada no assento preferencial? Não tenho mesmo sorte, isso é fato.
Ela está lendo. Tão linda lendo. Às vezes para e mira o teto, com um olhar perdido. Será que ela entende Nietzsche? Tenho medo, porque eu mesmo não entendo muito bem. Agora ela mexe na bolsa verde, parece se preparar para descer. Ela é lindamente atrapalhada. Deve tropeçar pra caralho na rua. Apaixonante.
Espera. Fala que é mentira. Isso é um chaveiro daqueles que tem aquele líquido dentro? Escrito “Jesus te ama”? Ela lê Nietzsche e tem um chaveiro brega com a frase “Jesus te ama”? Como assim? Se eu acreditasse em deus, diria agora que ele me salvou de uma crente-wannabe-intelectual-tesudona. O Senhor acabou com o meu encanto em menos de cinco segundos. Acho que pela primeira e última vez na vida eu direi: “Obrigado, Senhor”.
Que alívio não ter tido sorte. Não fosse por aquela bondosa velhinha, eu ia bater uma punheta pensando naquela crente, que desperdício! Puta merda, eu sou mesmo foda. Tenho algum tipo de sexto sentido pra esse tipo de coisa. Sabia que se fosse pra dar certo, eu teria tido coragem de puxar um papo. Alguma coisa tinha ali. Sabia. E essa coisa era Jesus! Jesus! Ironia do destino. Que vontade de rir.
Então a moça se levantou. Seu nome era Mirela. Saltou do metrô, subiu a rua de casa e pensou, decepcionada, por que é que ele não havia se oferecido para segurar seu livro e sua bolsa. Ele era tão bonitinho, qual seria o tamanho? - riu. Mas era desligado demais: viu que estava toda desajeitada com seu livro e sua bolsa, e nem pra oferecer uma ajudazinha? Bicho burro.
Foi abrir o portão de casa, fitou as chaves e pensou: por que eu só lembro de trocar essa merda quando olho pro chaveiro? Vou comprar um novo agora mesmo. E dar esse aqui pra dona Ana, aquela louca que vive querendo me fazer acreditar em deus.
Natacha Orestes