Não sou religioso. Não acredito em metafísica.
O
mal existe apenas como um comportamento humano. O mal é um contínuo de ações no
qual podemos nos mover de um extremo a outro e, até mesmo, sair.
O
mal é a falta de empatia. O mal são os olhos cegos e os ouvidos moucos. O mal é
a desatenção e o auto-centramento. O mal é aquilo que sinceramente não te
ocorre, que realmente não enxergou, que jura que não ouviu, que não sabe como
foi esquecer.
O
que é um batedor de carteiras comparado ao honesto pai de família que não
enxerga nada a sua volta? Que não vê sua esposa insatisfeita e desesperada,
seus filhos confusos e autodestrutivos, seu sócio abrindo a garrafa de uísque
cada vez mais cedo?
O
mal não é puxar a Anne Frank do sótão: o mal é cruzar todo dia pelo seu
porteiro com o braço engessado e nunca perguntar, nunca se preocupar, nunca nem
reparar.
O
mal não é ser dono de uma fazenda com duzentos escravos: o mal é ser contra uma
nova estação do metrô porque vai destruir as arvorezinhas da sua praça e nunca
te ocorrer das centenas de milhares de trabalhadores que não têm carro, passam
horas e horas em ônibus e terão suas vidas significativamente melhoradas por
uma nova estação.
O
mal não é a Estrela da Morte explodir Aldebarã: o mal é você relaxar do seu
longo dia de trabalho curtindo um filme, depois de um belo jantar feito pela
sua irmã, e nunca lhe passar pela cabeça que ela teve um dia igualmente longo
de trabalho, ainda por cima fez o jantar e agora está sozinha tirando a mesa e
lavando a louça, e ainda perdendo a chance de ver o filme!
O
mal é a falta de atenção
Você,
já na defensiva ao ler um texto tão moralista, responde:
“Perdão,
eu sou tão distraído, estou com a cabeça cheia de coisa, não lembrei mesmo…”
Mas
a “distração” que te faz esquecer não é o que te justifica, entende? É o que te condena!
Você
não é uma pessoa boa que tem péssima memória e é muito distraída. Sua péssima
memória e sua extrema distração são sintomas de seu profundo desinteresse
por tudo que não diga respeito a
você.
Duvido
que esqueça os nomes dos vice-presidentes da empresa que vão decidir sua
próxima promoção. Duvido que esqueça o endereço daquela loira gostosa que te
deu mole na praia.
Você
esquece é de lavar louça (“puxa, fiquei aqui distraído do filme, esqueci
totalmente da louça, agora ela já lavou, amanhã ajudo!”). Você esquece é de
assinar o livro de ouro dos porteiros (“putz, com essa correria de natal, nem
lembrei, mas tudo bem, ano que vem dou em dobro!”).
É
muito fácil nos absolvermos. Em nossa cabeça, somos sempre os protagonistas do
filme da nossa vida. Tudo o que fazemos é sempre justificado.
Se
dirigimos perigosamente e alguém nos xinga, ainda nos achamos no direito de
ficar chateados ou revoltados:
“Porra,
ele não vê que estou com pressa? Respeito as leis do trânsito todo dia, mas
hoje tenho aquela reunião importantíssima!”
Não
interessa o que seja: ou fizemos o certo (e o mundo tem que ver reconhecer e
nos premiar, senão é muita injustiça) ou fizemos o errado, mas por um motivo
totalmente válido (e o mundo tem que reconhecer e nos entender, senão é muita
injustiça).
O
que estou propondo é o oposto: qualquer comportamento seu que precise ser
justificado ou racionalizado já está por definição errado.
Mais
ainda: talvez você não seja uma pessoa boa.
Já
pensou nisso?
Então,
o que é ser bom?
Um
exemplo.
Lavar
metade da louça junto com a sua irmã (pois lhe seria intolerável sentar pra ver
um filme sabendo que ela está lavando toda a louça sozinha) significa sim
perder cinco minutos do filme, mas você não conseguiria viver consigo mesmo
sendo o tipo de pessoa que não faria isso.
(Aliás, bróder mesmo é quem vai na minha casa e lava a louça. O
resto é visita.)
Porém,
o exemplo acima não é um exemplo de “ser bom”, mas simplesmente de “não ser
escroto” – duas coisas radicalmente diferentes.
Parte
do problema é esse: estamos tão pouco acostumados a fazer o que tem que ser
feito que ficamos até orgulhosos.
Parece
até que lavar a louça ou ir malhar na academia são grandes conquistas. Que não
são coisas que fazemos para nós mesmos, para cuidar de nosso corpo e de nosso
espaço.
Ser
bom não é somente limpar o próprio cu. Isso apenas te impede de incomodar os
outros com seu cheiro de merda.
O
que vocês vão fazer com essas palavras
Algumas
pessoas leem textos como esse e ficam indignados. Pensam que me considero
melhor que eles. Que me acho santo. Que estou lhes dizendo o que fazer.
Não
percebem que o dedo que aponto é na direção da minha própria cara. Quem precisa
lavar mais a louça sou
eu.
Do
alto do meu galopante egocentrismo, estou sempre escrevendo só pra mim. Repetindo as
coisas que eu preciso
ouvir. Tentando me tornar
menos pior.
Mas,
na verdade, que importa se sou um santo ou um hipócrita? Um cagador de regras
ou um vaidoso egoísta? Faz diferença?
Sou
irrelevante.
Já
minhas palavras, essas podem ser relevantes ou não, dependendo de quem as lê e
do que fazem com ela.
Eu
sou um fingidor, mas vocês não precisam ser.
O
mal não é uma condição imanente, existencial, metafísica. O mal é um
comportamento.
Então,
basta começar a lavar a louça. Um dia de cada vez.
ALEX CASTRO